O XVIII Congresso Latino-Americano de Medicina Social e Saúde Coletiva, ocorrido na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) teve como tema ““Por democracia, direitos sociais e saúde, retomando o caminho da determinação social e da soberania dos povos” entre os dias 5 e 8 de Agosto. A Associação Latinoamericana de Medicina Social (ALAMES) abriu espaço para Oficinas de grupos de pesquisa e demais atores como atividades Pré-Congresso. Dentre elas, destaca-se a oficina “Desprivatização dos Sistemas de Saúde da América Latina”, organizada pelo Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES/UFRJ) e Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), nos dias 4 e 5 de Agosto.

A oficina ocorreu nos dias 3 e 4 de Agosto e teve participação de pesquisadores e representantes de movimentos sociais. Teve como objetivo discutir a desprivatização como estratégia, além de promover análises das políticas e reformas contemporâneas nos sistemas de saúde da região latino-americana, em especial no binômio privatização/desprivatização. Nesses dois dias oficina, promoveu-se também a construção de redes, agendas e propostas de intervenção para a Desprivatização na América Latina e a Construção de Sistemas de Saúde Universais. Ao final do evento, os organizadores da oficina, junto aos participantes, divulgaram uma Declaração Política, que pode ser lida abaixo.
Declaração “Sistemas Universais de Saúde: desprivatização como necessidade e possibilidade histórica“
O conceito de Sistemas Universais de Saúde tem sido desenvolvido e aprimorado nas últimas décadas a partir do acúmulo teórico e político da Saúde Coletiva e da Medicina Social latino-americana. Mais do que um contraponto aos modelos e diretrizes disseminados pelas políticas, reformas e modelos neoliberais, o conceito abarca fundamentos epistemológicos do pensamento crítico em saúde; ferramentas analíticas para produção de evidências, interpretação da realidade e comparação dos sistemas de saúde; e princípios ético-políticos capazes de orientar propostas alternativas e a ação coletiva pela defesa do direito universal à saúde.
Esta ideia-força vem inspirando processos históricos, resistências e lutas políticas concretas por reformas progressivas e universalistas na região. Todavia, ainda há uma grande distância entre a realidade de nossos sistemas de saúde e as aspirações democratizantes e socializantes que devem orientar a organização e construção de Sistemas Universais de Saúde.
Entre as múltiplas barreiras, políticas, econômicas e sociais que impedem avanços mais substantivos, destaca-se a tendência histórica e estrutural de privatização dos sistemas de saúde. Isto é, a ampliação da participação, influência e atuação do setor privado em atividades, funções, componentes e instituições dos sistemas de saúde, desde o financiamento até a provisão de serviços, passando por sua organização institucional, gestão e contratação da força de trabalho em saúde.
Embora manifestações e consequências destes processos sejam heterogêneas e específicas em cada contexto nacional e local, a privatização tornou-se um poderoso vetor da estratificação do acesso e das coberturas, da fragmentação das redes de serviços e do cuidado em saúde, e da acumulação de capital. Os resultados são o aumento das desigualdades em saúde; a subordinação dos interesses coletivos, das necessidades de saúde e dos modelos de atenção à lógica de mercado; a fragilização do setor público e das capacidades estatais; e a inviabilização de políticas de saúde universais, solidárias e redistributivas orientadas para a promoção da justiça social e da soberania sanitária.
Diante desse cenário, surge uma questão incontornável: é possível construir e organizar Sistemas Universais de Saúde sem desprivatizá-los? Acreditamos que não. Diversas experiências históricas e contemporâneas, em escalas e abrangência variadas, mostram que privatização não é inevitável nem inexorável. Ao contrário, sua reversão é uma necessidade e uma possibilidade histórica diante dos desafios sócio-sanitários e das múltiplas crises do presente.
Em linhas gerais e de forma preliminar, entendemos por desprivatização dos sistemas de saúde o processo de decrescimento do papel do componente privado nos sistemas de saúde e dentro de uma dinâmica público-privada em constante transformação. Isso passa necessariamente por um duplo movimento. De um lado, o fortalecimento do Estado, a expansão do setor público e ampliação do controle popular em todas as dimensões dos sistemas de saúde. De outro, a redefinição do escopo, das funções, das formas e dos limites setoriais de operação dos componentes e agentes privados. Tal movimento deve subordinar ao interesse coletivo os recursos financeiros e assistenciais existentes revertendo sua apropriação privada, além de reduzir a influência das forças de mercado sobre as políticas de saúde.
Naturalmente, a desprivatização não deve ser vista como uma abstração, mas como movimento articulado e determinado por processos históricos, pela ação política e pela dinâmica dos conflitos sociais.
O reconhecimento de que a desprivatização é uma premissa indispensável para a construção de sistemas públicos e universais no século XXI traz à tona uma série de desafios teóricos, metodológicos e políticos.
Em primeiro lugar, faz-se necessário a renovação de conceitos e categorias baseadas no pensamento crítico em saúde que permitam definir a desprivatização, bem como analisar, comparar e avaliar experiências históricas e processos reais em marcha. Em segundo lugar, tal movimento exige esforços que só podem ser bem-sucedidos se empreendidos de forma coletiva, a partir do diálogo entre centros de pesquisa, instituições públicas, organizações da sociedade civil e movimentos sociais da região. Em terceiro lugar, a produção de conhecimento sobre a desprivatização não deve ser um fim em si mesmo, mas deve estar orientada para a formulação, viabilização e articulação de alternativas, instrumentos e proposições capazes de subsidiar e impulsionar a luta política pelo direito universal à saúde.
Nesse sentido, a Associação Latino-americana de Saúde Coletiva e Medicina Social (ALAMES) saúda a emergência deste debate em seu XVIII Congresso e conclama seus investigadores, militantes, capítulos nacionais e redes para somarem esforços na construção de agendas de pesquisa, na constituição de espaços de discussão e formulação coletiva, e na mobilização social pela desprivatização dos sistemas de saúde na América Latina e no mundo.
Rio de Janeiro, 8 de Agosto de 2025
Grupo de Pesquisa e Documentação sobre o Empresariamento da Saúde (GPDES/UFRJ)
Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde e Relações Público-Privadas (GEPS/USP)
Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes)
Grupo de Trabalho de Estudos Sociais em Saúde da CLACSO
Movimento Pela Saúde dos Povos (MSP) – Círculo de Sistemas de Saúde e Buen Vivir
Associação Latino-americana de Medicina Social e Saúde Coletiva (ALAMES)